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“A Semana” por Carmen Dolores

2 de julho de 1905

Ninguém desconhece as inúmeras frases e os variados provérbios em louvor da audácia… De l’audace, encore et toujours de l’audace! Segundo os latinos, ela serve para empolgar a fortuna, e vence obstáculos, quebra resistências, ganha vitórias em qualquer terreno.

            Mas, entre nós, fora talvez mais prudente procurar um corretivo ao excesso de tal qualidade, cujo abuso, juntando-se à natural efervescência do sangue meridional e também à incompreensão de uns tantos deveres não incluídos no código criminal, mas sim no social, de honra e respeito, acarreta muitos enganos e muitos inconvenientes, muita coisa absurda e desagradável, que um pouco mais de timidez evitaria.

            Aconteceu agora que uma senhora estrangeira, aqui recém-chegada, passou de bond pelo campo de Santana, viu aquele grande e formoso jardim ali verdejando, apeou-se logo, encantada, e entrou.

            Ela ia só, habituada às longas estações, em Paris, no parque Monceau, nos jardins das Tulherias, do Luxemburgo e outros. E, logo aos primeiros passos, ficou deslumbrada pelo esplendor da nossa vegetação e da nossa flora, pela beleza das largas aleias banhadas de luz, abrindo filas de ouro vivo nos veludosos gramados cor de esmeralda.

            Não tardou, porém, que estranhasse um insistente pigarro atrás de si… Voltou-se e viu um homem de chapéu de palha que a seguia na luminosa solidão do parque e que se pôs a tossir e pigarrear mais forte, sob o seu olhar surpreso, como se parodiasse estes versos de Felipe de Orléans:

Se ma toux jusqu’à ton coeur arrive,

Ah! des ce soir, prends-moi pour jardinier…

            Mas a bronquite não produziu o desejado efeito, nem a senhora queria cultivar os jardins da aventura brutal, tanto que apressou o andar. O indivíduo apressou também o seu. Ela, então, agora assustada, dobrou a rua, outra, mais outra, e foi sair diante do lago, límpido e fresco, palhetado de sol; mas nem teve o tempo de admirá-lo, porque dois outros indivíduos levantaram-se de um banco e a cercaram de exclamações e propostas:

            — Oh! madama, está sozinha? Quer tomar alguma coisa?…

            Um momento, a senhora, que é distintíssima e não entende bem o português, julgou que se tratasse de alguma reclamação; talvez estivesse ela infringindo qualquer regulamento, quem sabe?

            Mas logo a grosseria dos olhares, dos sorrisos e da mímica, fez-lhe compreender perfeitamente o insulto, e sem esperar mais nada, retrocedeu a estrangeira correndo, até dar em um dos portões, onde expôs, ainda arquejante, a sua queixa indignada a um dos guardas ali postado.

            — Mais voyez donc ces hommes là, monsieur…

            O monsieur, porém, desatou do seu lado a rir, e a senhora teve de ir reclamar justiça em Varsóvia…

            Ora, este fato, que sucedeu quinta-feira, que é verídico, autêntico e não favorece certamente a reputação de delicadeza dos nossos costumes, é coisa muito trivial, que se repete sob muitas formas, cada dia, em nossa cidade, a qualquer hora e em qualquer parte.

            A senhora que aguarda o seu bond, ou que vai a compras, ou trata da sua vida, ou espera à porta de uma loja o seu marido ou o seu irmão, é logo sitiada por uma porção de vadios e de idiotas, que lhe atiram cumprimentos impertinentes e por vezes injuriosos, que a seguem, que a mortificam, que a insultam. Não se trata de uma admiração lisonjeira. É o convite bestial e insolente, a graça pesada, a caça pelas ruas e o atracão nos bonds — a audácia, enfim, ao serviço da insolência, ferindo as senhoras nos seus mais suscetíveis e nobres melindres. Assim, pois, não bastam as ruas descalçadas, os buracos, as demolições, as nuvens de pó asfixiante, os estrepitosos caminhões, o calor, a soalheira e os cocheiros dos bonds: temos ainda de aturar a praga dos audaciosos!…

            Deveras, é muito flagelo junto. E para que parques e jardins, se o não podemos frequentar? O parque do campo de Santana é o que todo mundo sabe; o Passeio Público só é possível à noite, cada família bem garantida pelo seu respectivo chefe e conservando-se as moças bem carrancudas no seu banco. Ao menor indício de juvenil garrulice, cuidado! que o pessoal bolineiro avança. O largo do Rocio representa um foco de peste bubônica…

            Que resta então? Só o jardim do largo do Machado, defendido pela austera sombra negra da esguia batina de monsenhor Molina… E valha-nos ao menos isto. Mas é tão pouco!

*

            Uma das fábulas de La Fontaine que mais impressiona a infância é aquela em que uma infeliz podenga vagabunda implora humildemente a hospitalidade de uma honesta e abastada cadela, consegue instalar-se por uns dias no domicílio desta, e depois arreganha os dentes, recusa nunca mais sair e acaba expulsando a legítima dona dos seus lares…

            Abstraindo dos animais da ficção, não é o mesmo que sucede continuamente aos homens na vida real, quer no terreno material, quer no sentimental?

            Cede-se um pouco — e tomam tudo. Estende-se a mão generosa ao tigre vencido, que rasteja, alongando o espinhaço, batendo a cauda, em um felino abandono de fraqueza e de reconhecimento, e não é contudo uma carícia de língua rósea que umedece os nossos dedos: é a saliva do ódio, é a presa feroz que se nos enterra na carne e faz jorrar o nosso sangue.

            Ora, muitas vezes a criatura humana encerra um tigre nos recessos do seu íntimo; e quem faz o favor, abdica ou partilha, deve sentir o perigo de ceder à fera…

Car tu crispais les griffes noires,

Et le désir de me manger

Te faisait grincher les mâchoires…

            Mas não! O orgulho de cada um goza regaladamente a superioridade de servir, de ser útil, de contemplar o outro na atitude humilde de servido; e as contrações antecipadas da mandíbula ávida de abocanhar para depois morder, escapam a uma sagacidade entorpecida pelas fumaças das ilusões. Não é raro, entretanto, que a pura bondade, límpida como o cristal e preciosa como um diamante de gema, presida a certos atos generosos, cujo alcance ideal escapa aos dissecadores das almas. Nestes casos, a ingratidão assume um papel duplamente revoltante. É feroz. É iníqua.

            Em que categoria deve ser classificada a ingratidão dessa heroína da semana, cuja história narram todos os jornais — verdadeira podenga usurpando a posse da casa e do companheiro da sua protetora? Ela veio rastejando como um tigre vencido, essa Silvina, cujo nome cheira delicadamente a pequeninas flores silvestres, de um encanto humilde. Veio rastejando e pediu hospitalidade por uns dias ao honesto e laborioso casal, que cedeu às suas súplicas e recebeu-a portas a dentro. Ela teve um lar, teve um teto, mas não teve o marido, que ainda a outra o possuía. Que fez, então? Seduziu o homem — e assim teve tudo. Uniram-se depois os dois, e esbordoaram a dona da casa. Não contentes ainda, enxotaram-na do próprio lar. E agora, Silvina floresce luxuriosamente no campo regado pelas amargas lágrimas da outra, e de vencida passou a vencedora exultando de prazer…

            Oh! eterna fábula do grande La Fontaine, como sois verdadeira! E que temerosa coisa é a ingratidão, quando reforçada ainda pelas perfídias tão cruéis de uma rivalidade de mulher! A guerra, a peste, o raio, o cancro são preferíveis a uma animosidade feminina que traçou o seu plano de malvadez e o leva por diante, através de tudo…

*

            Mas aí vem Coquelin! Já está perto Coquelin! Bu, que s’avance!… Aí vem a companhia lírica… Bu, que s’avance!… Aí vêm as encomendas de toilettes, rugem as sedas de reflexos opalinos, cerúleos, róseos, desdobram-se gazes cintilantes, rendas que espumam, filós que luzem pontilhados de ouro, musselinas vaporosas — todo o prestigioso arsenal da beleza e da faceirice.

            O cabeleireiro Schmidt, mais rosado que as próprias bonecas da sua vitrina, já inventou um sem número de bandós e ondulações capilares, e o seu pequeno gabinete de massagens elétricas não desenche mais… Ah! meus amigos, a luz do teatro é tão pérfida! E cumpre não dar razão a este espirituoso verso do século XVIII:

Quel âge a cette Iris, dont on fait tant de bruît?

Me demandait Clitou naguère.

— Il faut, dis-je, vous satisfaire:

Elle a vingt ans le jour, et cinquante ans la nuit.

            Mas, com o engenhoso Schmidt, fica arredado este perigo; podem aprontar-se os binóculos em toda a segurança, gozando antecipadamente a esperança de uma harmonia completa de linhas e de cores, até de matizes suavíssimos. E o espetáculo da sala igualará em esplendor incomparável o da cena, onde a arte arrebatará triunfalmente os felizes assinantes, transmitindo-lhes os seus inefáveis eflúvios pelo fio elétrico do eloquente e espirituosíssimo nariz de Cyrano de Bergerac.Bu, que s’avance!

Carmen Dolores

Universidade Federal do Paraná



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